sábado, 29 de janeiro de 2011

TEMPO DE SECA E DE SONHO

Segunda-feira, 8 de dezembro de 1947. O calendário marca o Dia da Família. Para Laurindo Barros da Costa esse é, talvez, um dos mais auspiciosos dias da sua existência; há pouco ele chegou da solenidade de sua formatura em Ciências Jurídicas, pela Faculdade de Direito do Ceará, acontecida no Theatro José de Alencar. Margarida, sua jovem e bela esposa, dorme placidamente; infelizmente, ela não pôde comparecer à colação de grau, porque não vinha se sentido bem, nos últimos dias. Ainda adolescente, e já enfrentando as dificuldades próprias de uma primeira gestação, o desconforto até se justificava. Provavelmente em junho do ano vindouro ela estaria com o seu rebento nos braços.
Laurindo confessa ter uma velada preferência para inaugurar a sua prole com um menino. Com a graça de Deus, ela há de ser tão numerosa quanto foram as dos seus avós. Se tudo der certo ele vai chamar a criança de Pedro, rendendo honra, assim, ao avô materno, prematuramente desaparecido do convívio familiar e que tinha esse mesmo nome.
Nesse instante, sorrateiramente, chegam-lhe à mente vivas lembranças de fatos ocorridos três lustros atrás, e que agora vêm lhe subtrair o sono. Por sua vista, passam cenas, como que saídas de uma película do Cine Familiar, onde o falecido Pedro Carneiro trabalhava, franciscana e voluntariamente, como porteiro, nas noites de exibição.
O pensamento leva Laurindo de volta a 1932. Uma parada no tempo, e lá está ele na localidade de Acarape, no Município de Redenção, ano de seca cruel, que impingiu um sofrimento enorme aos irmãos cearenses, produzindo hordas de famintos a caminhar, a esmo, por estradas e trilhas tortuosas, em busca de alimento; quando não buscavam atingir algum posto de recrutamento, na intenção de engrossar a fila dos que se dispunham a migrar, para a Amazônia, onde, com certeza, iriam permutar o cáustico clima do sertão nordestino, pela umidade insalubre da hiléia brasileira, a fim de extrair o seu precioso látex.
O sítio Catolé, uma gleba de terra com escritura passada no nome dos seus pais, tinha sido sustentáculo de inúmeros familiares e agregados, durante longo período. O chão, regado ao suor dos corpos, dantes tão fecundo, a exibir os frutos abundantes da lavra, nada mais fazia florescer, pela absoluta falta d’água, vinda dos céus, ou melhor, das nuvens; naquele fatídico ano, não caíra uma gota de chuva. Os dois açudes secaram, transformando-se em barreiros, e o rio, que cortava a propriedade paterna, parou de correr, convertendo-se, aos poucos, em um riacho minguado, um mero filete de água, até desaparecer; completamente exposto, o leito do rio acabava por revelar os segredos que, curiosamente, em outras eras, ele e seus irmãos mais novos buscavam desvendar, nas suas profundezas, em arriscados mergulhos, coisas mesmo de peraltices infantis.
A seca trouxera grande infortúnio à sua família, com os víveres acumulados no ano precedente sendo gradualmente consumidos, sem qualquer reposição. Era evidente a insegurança, quanto à sobrevivência dos Barros da Costa, que viam definhar os seus animais de criação, à falta de comida, deixando-se morrer de inanição e de sede. O verde dos campos nucleara-se de cinza, à medida que os pastos da região perdiam a sua cobertura vegetal; enquanto isso, o eito esturricado exalava o odor da morte, trazendo desolação e tristeza. Era visível a contaminação do medo, no meio daquele quadro pintado de negro; ao alto, voavam os urubus, fazendo assustadoras incursões em voos rasantes, como se estivessem cumprindo um ritual macabro. Um clima de tragédia anunciada pairava no ambiente sofrido, com a quase legião de moribundos, aguardando, para muito breve, um final funesto, refestelando-se os abutres com suas carnes, isentas de gordura.
Em 1931, Laurindo havia concluído o Curso Primário, após cinco anos de estudo, como o aluno mais aplicado da Dona Marieta Barroso, a diligente e enérgica professora da escola municipal de Redenção. Durante todo esse tempo, ele se via obrigado a percorrer a pé, ou no lombo de um jegue esquálido, mais de uma légua de terra, para vencer a distância da sua casa, no Catolé, até o local onde funcionava a escola. Nos dois primeiros anos, ele ia sozinho, servindo-se da modesta montaria, que tinha uma cruz, desenhada no dorso, a lembrar o Domingo de Ramos, quando Jesus entrou triunfantemente na velha Jerusalém, também montado em um jumentinho parecido com aquele, embora sem ares de privação.
A partir de 1930, tendo por companhia seus outros irmãos, que passaram a freqüentar a mesma escola, ele foi apeado do animal, cedendo aos mais novos o lugar de “cavaleiro”; a bem da verdade, ele se tornou um “cavalariço”, ou seja, um puxador de jumentinho; o jerico, já um pouco alquebrado pelos anos, não suportou a rudeza da seca de 32, sucumbindo à rigorosa falta de tudo, imposta pela natureza.
O desaparecimento daquele dócil e afável meio de transporte não lhe trouxe apenas grande consternação, pela afeição angariada, mutuamente, durante todos aqueles anos de trajeto casa/escola/casa; com a sua morte e, também, por conta de não haver substituto, ele se obrigava agora a efetuar, a pé, a estafante caminhada diária. Era assim que todos os dias ele acordava às 5h30min e antes das 6h, após um mero café pingado de leite mugido, com um só pedaço de pão para acompanhar, rumava para a escola, percorrendo, com rapidez, durante uma hora, os mais de 6 km, até chegar à Escola da Professora Marieta Barroso Barbosa, retornando ao Catolé, por volta do meio-dia, com o sol a pino, cansado e com fome.
A terrível seca de 32 podou, com toda a força, a sua carreira de estudante. Parte dos recursos que o pai amealhara, em 1931, para mandá-lo à capital, onde deveria ingressar no Curso Ginasial, precisou ser desviada para outros fins; a prioridade agora era lutar para garantir a subsistência de toda a família. Por conta disso, Laurindo teve cancelada a sua ida para Fortaleza, onde daria continuidade aos estudos; entretanto, ficar de todo parado, era uma injustiça. Para evitar um mal maior, ele foi re-matriculado na quinta série, tendo que assistir as mesmas aulas do ano anterior; era uma situação constrangedora e que exigia dele muita paciência e tolerância, para não causar dissabores aos colegas que recebiam os ensinamentos pela primeira vez.
O inverno de 1933, por seu turno, chegou tardiamente, com uma copiosa chuva, caída no dia 19 de março, Dia de São José, padroeiro do Ceará. Esta era a data-limite da credulidade do sertanejo cearense, que ano após ano depositava toda a sua esperança de um bom inverno, no poder do Santo Operário, capaz de interferir, junto à São Pedro para mandar chuva grande para a boa gente do sertão. Em que pese a quadra invernosa de 33 haver sido curta, choveu o suficiente para tingir de verde os Campos do Catolé, crestados de sol, trazendo alento aos camponeses, cansados de tanta luta contra o rigor da intempérie.
Mesmo assim, os efeitos danosos da seca de 32, incluindo uma profunda escassez de alimentos, prolongaram-se nos anos subseqüentes, de grande estagnação econômica, gerando medo, miséria e desolação em tudo que era localidade do interior cearense. Os Barros da Costa, pais e filhos, sobreviveram às hostilidades do meio, muito embora a família amplificada, com tios, primos e outros parentes, viesse a ficar menor, à conta da migração de muitos deles para outras paragens distantes.
Os recursos financeiros sumiram, como que por encanto, enquanto os negócios de compra e venda regrediram ao tempo do escambo, não dispondo ninguém de numerários suficientes para ousar mandar a filharada estudar fora. Como ainda não existia Ginásio, em Redenção, ou em outro município vizinho, Laurindo teve que, beneditinamente, permanecer no Catolé, por mais dois anos, ocupando o seu tempo na dura faina de domar a terra, de sol a sol, para que produzisse bons frutos. A dureza do trabalho agrícola não lhe trazia, porém, dissabores. À medida em que lavrava e semeava a terra, dela colhia a sua produção, e isso lhe agradava a alma; por outro lado, enquanto ajudava na contabilidade doméstica, ao cuidar dos animais de criação, ele próprio garantia carne e leite para os irmãos; já ao exercer o trabalho braçal de moer a cana-de-açúcar, para obter a garapa, rica de ferro, ele conseguia adocicar a sua vida e a dos seus muitos entes queridos.
O que mais lhe dilacerava o espírito era, contudo, a vontade imperiosa de continuar os estudos, tanto assim que apelava a qualquer um que dispusesse de livros, para emprestá-los, a fim de que à noite, ele pudesse ler, um a um, à luz da lamparina; essa ânsia incontida de conhecimento chegava a provocar nos pais, João e Margarida Barros da Costa, um misto de orgulho e aflição, tomados que eram pela sensação de impotência diante da vontade exacerbada de aprender do filho primogênito, tido como modelo por seus outros desdobramentos celulares.
Passado o tempo das vacas magras, chegaram os bons ventos. A natureza resolvera vestir-se de verde, a água já corria mansa pelo leito do rio, no sítio Catolé, e o menino Laurindo, agora feito homem, depois de amargar a convivência com o fantasma da seca, pôde, enfim, dar graças a Deus pelo milagre da vida vegetal, pelo caminho que se abria, diante dos seus olhos, para conseguir o seu intento de aprender. Agora ele estava ali: revivendo o passado e sonhando com o futuro que pulsava no ventre de Margarida.
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Da SOBRAMES/CE
* Publicado In: IDEAL CLUBE. - Prêmio Rachel de Queiroz 2010: categoria contos. Fortaleza: Tiprogresso, 2010.

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