terça-feira, 16 de abril de 2013

NOS TEMPOS DO “FAMILIAR”


Estação Ferroviária do Otávio Bonfim, nome pelo qual se conhece o bairro Farias Brito (Arquivo Nirez).

 Por Elsie Studart Gurgel de Oliveira (*)
A história do Cine Familiar atravessa várias gerações. São quase quatro décadas, indo de 1935, ao ser comprada uma antiga máquina de projeção, até 1971, quando o velho cinema deu o seu último suspiro, com o aluguel do prédio onde funcionava, para saldar dívidas e resolver outros problemas. Na transação pesaram mais os seiscentos cruzeiros da locação mensal, do que os mil apelos sentimentais grudados naquelas paredes e espalhados nas poltronas que se alinhavam em frente à telona, guardando segredos dos seus ocupantes.
Os menos caretas da época dizem, hoje, que muita coisa rolou debaixo daquele teto, mas que isso era normal, por força da explosão dos hormônios. No escurinho do cinema, não eram os “drops de anis” da Rita Lee, que faziam a festa, mas os “pipers” verdinhos, que deixavam a boca bem fresquinha. E haja “cantada”, com sabor de menta. Entre suspiros, risos e lágrimas, no final do filme aparecia o famoso The End. Quem via e quem não tinha tempo de ver a película, porque os namoros de então eram de olhos fechados, com a adrenalina subindo e fazendo disparar as batidas do coração, contentava-se em viajar, nas asas da imaginação, indo pra lá de Marrakesh. Isso faz lembrar do clássico Casablanca, com Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, seguramente censurado pelos frades, que o achavam avançado demais para a idade dos freqüentadores habituais do Cine Familiar. As time goes bye, decididamente estava fora do circuito. Quem quisesse, pois, ouvir Rick, dizendo: “Play it again, Sam”, tinha que procurar outras casas de exibição.
A preferência recaía sempre nos filmes de conteúdo religioso, nos épicos, quando não, nos dramalhões do tipo O Ébrio, de Gilda de Abreu, enriquecido com o vozeirão de Vicente Celestino. Os seriados, como os de Tarzan, a Ilha do Tesouro, Durango Kid e o Último do Moicanos, caíam no gosto popular e era um sacrifício esperar o final da próxima semana, para ver a continuação da série, produzida por quem entendia do riscado. Coisa parecida acontecia com os filmes de bang-bang, em que contracenavam heróis e bandidos. A meninada, principalmente, batia palmas para Tom Mix, Roy Rogers e tantos outros astros do cinema, personificando cowboys, ao ponto de imaginar a poeira correndo solta na sala de projeção, chegando a dar coceira no nariz.
São essas pequenas variantes, que enobrecem a sétima arte, dando-lhe a característica de imitação da vida. Fatos históricos viram obras cinematográficas, da mesma forma que tragédias domésticas se transformam na dor de todo o mundo.
Nazareno Oliveira que, por muito tempo, conviveu com o Frei Lauro Schwarte, um dos franciscanos da paróquia de Nossa Senhora das Dores, com livre arbítrio para decidir sobre o que deveria passar, ou não passar, na tela do “Familiar”, conta que era ainda menino, morador da Rua Carlos Severo, ao lado do Círculo Operário, quando presenciou um fato, sem dúvida alguma, inusitado. Na vesperal de um domingo qualquer, estava sendo levado o filme “Coração de Luto”. A fila dobrava a esquina. Todos queriam assistir o drama, por muitos apelidado de “Churrasco de Mãe”. Bilheteria igual, nunca se viu. O povo, já naquele tempo, vibrava com uma tragédia, para alimentar a sua fome de notícias bombásticas. Essa foi só uma ponta da voracidade humana por acontecimentos sensacionalistas. O público acompanhava a canção melodramática de Teixeirinha e debulhado em lágrimas, cantarolava junto: “O maior golpe do mundo/ que eu tive na minha vida/ foi quando com nove anos/ perdi minha mãe querida/ morreu queimada no fogo/ morte triste e dolorida/ que fez a minha mãezinha/ dar o adeus da despedida”.
Mas nem só de tragicomédias vivia o Cine Familiar. O médico Winston Graça, por exemplo, diz que foi ali, assistindo o filme de suspense “Um cidadão acima de qualquer suspeita”, que conquistou sua mulher, Áurea, então moradora do Parque Araxá. Sem qualquer trocadilho, áureos eram mesmo os tempos do Cine Familiar.
Outro cinéfilo inveterado era o pneumologista Paulo Gurgel, o mais velho dos 13 filhos da D. Elda e do Dr. Luiz Carlos da Silva, residentes, àquelas alturas, na Rua Domingos Olímpio, nas proximidades das casas da RVC. Os trocados que juntava na semana, iam para as matinês dominicais no Cine Familiar. Ele sabe só tudo sobre cinema, e o que é melhor, do cinema que encantou a sua juventude. Basta acessar a internet: http://gurgel-carlos.blogspot.com.br, e, se estiver interessado, vai conhecer a história do Sr. Vavá, o projetista da “Familiar”que acabou se tornando o dono do Cine Nazaré, na Rua Padre Graça, justo no local onde existiu um dia a Lagoa da Onça.
Muitas são as histórias que rondam essa época de ouro, com o cinema ocupando um lugar de destaque, onde as pessoas se conheciam, faziam amizade, marcavam encontros, não raros saindo dali namoros, noivados e até casamentos. A Igreja das Dores, colada ao Cine Familiar, já era estimulante para o que poderia vir a acontecer.
Quem, por acaso deliciou-se com as “chacocas” vendidas na praça, perto do cinema, vai se lembrar também do vendedor de picolé, gritando “ô doce gelado”, e do pipoqueiro, como o seu carrinho de flandres, e uma espécie de fogareiro no meio, jogando o milho, com óleo e sal, até ver o pipocar das pipocas (que pleonasmo!), saindo quentinhas, ao gosto do freguês. Os shoppings de hoje, com salas multiplex, tão assépticas e tão frias, jamais trarão de volta o encanto de antes, em que até a dança das muriçocas fazia parte do ambiente cinematográfico. Por isso é que os velhos moradores do Otávio Bonfim costumam dizer: “Já não se faz mais cinema, como os de antigamente. O Cine Familiar, que sirva de exemplo”.
Como não poderia deixar de ser, o Cine Familiar integrava-se perfeitamente no cenário religioso da Semana Santa, usando e abusando do direito de, a cada hora, levar à tela mais uma sessão da “Paixão de Cristo”. De tão velha, e tão rodada, a película, em preto e branco, perdera a sua cor original. Era quase amarela, desbotada, mal dando para ver Cristo montado no jumentinho, entrando em Jerusalém. Dava dó aquele pobre animal, com as pernas trôpegas e o jeito de quem está prestes a desabar, por conta do peso do ator, montado no seu lombo, representando Jesus Nazareno, poucos dias antes da sua crucificação. O fato é que de tanto “rodar”, a película foi quebrando, precisando cortar parte do celulose, dando margem ao encurtamento do filme. O mais importante era, no entanto, preservar as cenas principais da paixão de Cristo, em especial o momento em que Ele, com os braços abertos e as mãos pregadas na cruz, olha para o alto, dizendo “Senhor, Senhor, por que me abandonastes?”. O público que lotava a casa, independente do horário da sessão, vertia rios de lágrimas, mais ainda quando a natureza compactuava com aquele instante de sofrimento sobrenatural. Tudo ficava escuro, um raio cruzava o espaço e aos pés da cruz, Maria e Madalena choravam a morte de Redentor.
A verdade é que o mundo mudou e, apesar das inovações tecnológicas, dos efeitos especiais mirabolantes, das festas monumentais de entrega dos “Oscars”, estatuetas representativas dos lobbies da indústria do cinema, quebrou-se aquele elo que juntava magia, emoção, prazer e divertimento. A farra do lucro certo, com as superproduções cinematográficas, corrompeu os valores dos primeiros tempos, em que se fazia arte, pela própria arte. Por isso é que já não se veem meninos, moçoilas e casais buscando a inocência “inviolata” de um Pablito Calvo, no seu memorável Marcelino, Pão e Vinho, tão próximo da realidade franciscana e tão pleno de emotividade, do começo ao fim.
Mário Quintana foi feliz ao falar da casa da sua infância, dizendo que “por mais que a gente se mude, ela continuará sendo a primeira e a única”. Isso vale também para o Cine Familiar: “por mais cinemas que a gente procure para assistir um filme ou coisa que o valha, nada será como dantes, porque foi ali naquele chão, sem piso de cerâmica, muito menos de porcelanato, que se enterrou o umbigo, que se fincaram as raízes de uma época que não tem como voltar. De concreto, mesmo, só existe o nome “Cine Familiar”, no alto da fachada do imóvel que abrigou, por 36 anos a “casa de espetáculo” fundada por Frei Leopoldo.
Não seria demais se o poder público, investido da sua autoridade e mostrando-se sensível ao apelo do povo que habitou o bairro Otávio Bonfim, e mesmo do que resiste a sair de lá, mudasse o nome “Praça da Liberdade”, para “Praça da Saudade”, numa atitude simbólica de preservação da memória de uma instituição – o Cine Familiar, assim qualificada por seu aspecto social, como integrante da paisagem urbana de uma Fortaleza que vivia em paz.
(*) Técnica em Assuntos Educacionais
** Publicado, sob o título "Cine, valores e vida cotidiana”, In: Diário do Nordeste. Fortaleza, 6 de abril de 2013. Suplemento de Cultura e Literatura. p.3.

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