sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A HUMILDADE HIPÓCRITA




Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Não valeria alcançar a idade provecta se toda a sabedoria do mundo fosse uma tolice.  Nunca poderíamos conservar os arroubos da juventude, desde que a velhice traz consigo as suas distorções, que dela são próprias. Pois o velho, em seu gênero, é criatura tão imperfeita quanto o moço. Os velhos permanecem isolados, as crianças continuam morrendo de fome, as guerras prosseguem e a fome - não somente de comida, mas de compreensão e solidariedade - persiste.
Como passei minha vida de médico estudando a falta de comida, causadora da desnutrição ancestral do ser humano, sei que, apesar de todos os avanços tecnológicos, não nos livramos da cadeia alimentar. O medo ancestral de passar fome persiste e é aumentado pela propaganda que incute que estamos abalando a existência do planeta. Em suma, adicionaram à nossas culpas o pecado de sermos destruidores do Planeta.
Ao envelhecermos, cresce em nós o medo do julgamento final, que se anuncia cada vez mais próximo - muito embora digam por aí que nem o jovem morre, nem o velho vive... Apesar da opinião geral de que todo idoso é trombudo, não são poucos os que,  cansados de serem maltratados, resolvem, para sobreviver, aparentar humildade. Mas poucos são os que se tornaram verdadeiramente humildes. Vamos a uma parábola rabínica sobre a humildade.
Quando Jeová estava escrevendo os Mandamentos das Leis, dizem que originalmente seriam onze e não dez. Havia um deles que comandava: Serás humilde na tua vida. Foi quando a Humildade soube (fofocas sempre existiram, tanto na Terra como no Céu), que ela fora elevada ao status de Mandamento. Desesperada, bateu à porta da casa do Senhor. O frio da madrugada era intenso, mesmo no Paraíso.
Vestida como de costume de farrapos e andrajos, ao bater na porta de Jeová ficou congelada, mais de medo do que de frio...
Deus, ouvindo as batidas insistentes àquelas horas ficou com receio de um assalto, perguntou: — Quem bate? Trêmula, balbuciou a visitante: — É a Humildade, SENHOR. Deus abriu a porta, e vendo o seu estado enregelado, ordenou, severo e penalizado: —  “Entre - vá se aquecer junto à lareira”.
Apesar do calor do fogo ela tremia mais do que vara verde... E gaguejando conseguiu dizer:
— Soube... Que o SENHOR inscreveu-me entre Vossos Mandamentos... E grossas lágrimas escorreram pelo rosto da miserável.
— E por que choras, pergunta Jeová? É uma honra estar inscrita nos preceitos que entregarei amanhã ao patriarca Moisés.
Ajoelhada e implorando, a Humildade pede ao seu Deus:
— Senhor Jeová, caso eu passe a ser um mandamento, como poderei ser nomeada de Humildade? Perderei minha identidade, prosseguiu: — Para algo existir é preciso ter um nome. A Humildade não pode ser um Mandamento. Caso tenha algum poder, não serei mais o que sou, seria transformada em Hipocrisia. Eu não quero deixar de ser Humilde. Deus parou um pouco, pensou, alisou as barbas e exclamou:
- Serás atendida, não mais farás parte dos meus preceitos. E assim foram esculpidos os 10 Mandamentos.
Muitos anos, séculos, se passaram da entrega das Tábuas da Lei ao patriarca Moisés. Foi quando um teatrólogo compôs um diálogo para uma das suas peças: Assim cubro a nudez de minha perversidade/ com velhos andrajos roubados das Escrituras/ parecendo um santo quando mais encarno o Diabo [William Shakespeare (1564-1616) Ricardo III, Ato.I ]. Outro, seu contemporâneo e escritor, espanhol de nascimento, disse: “A humildade é o fundamento de todas as virtudes e sem ela não existe nenhuma que o seja” [Cervantes (1547-1616) Colóquio dos Cães].
E concluo eu, simples mortal:
— A hipocrisia é uma homenagem que o orgulho presta à Humildade.
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).

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