quarta-feira, 18 de junho de 2014

DOENÇA E LITERATURA


Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta

Dizem ser a doença a musa inspiradora dos escritores!
Apesar de afirmarem ser a arte literária destilada a partir da dor e do absurdo, tenho minhas dúvidas quanto a essas assertivas, no tocante ao discurso poético ou à narrativa ficcional. Textos com valor literário somente podem ser produzidos quando a “aparelho mental” do escritor está em equilíbrio.
Jamais soube da possibilidade ou, muito menos, testemunhei um artista em crise paranoica ou com dores atrozes produzindo obras de arte. Há muita fantasia na relação da doença com o trabalho criativo.
O poeta Manuel Bandeira foi desenganado aos 18 anos com o diagnóstico de tuberculose e interrompeu o curso de Arquitetura em São Paulo para se internar em sanatórios.
Porém, afirmar que a inspiração poética de Bandeira nasceu nesses momentos de reclusão e ócio forçado, da proximidade com a morte, da percepção de que cada segundo pode ser o último; escrever que a inspiração decorria do fato de o poeta ser celibatário; e terminar por afirmar que a doença que o assolava foi a sua fiel e única companheira, é forçar por demais a barra - apesar de a tuberculose, antes do advento da moderna terapia, ter sido, no início do século passado, um mal estigmatizado e sem esperança de cura.
Bandeira viveu até os 82 anos. A tuberculose permeou a vida de escritores notáveis: Álvares de Azevedo, Castro Alves, Edgar Allan Poe, Franz Kafka, Anton Tchekhov, Lord Byron, Robert Louis Stevenson e outros mais. De forma mais ou menos explícita, todos eles manifestaram nos seus trabalhos o significado agudo da passagem da vida quando se tem uma doença grave.
A epilepsia foi outro mal que influenciou a obra de alguns dos maiores expoentes da arte da escrita. Fiódor Dostoievski. O escritor russo criou dois personagens epiléticos: Kirilov, de Os demônios (1872), e o príncipe Michkin, de O idiota (1869). Através deles, Dostoievski descreve a aura extática, fenômeno visual presente em algumas formas do distúrbio.
Entre nós, Machado de Assis sofreu durante todo o seu período produtivo de convulsões e, em especial, no fim de sua vida, quando elas se tornaram mais frequentes. Machado é a figura mais emblemática do estigma duplo: preconceito racial e epiléptico (a epilepsia era, na época, erroneamente associada a uma personalidade criminosa). É fato que muitas de suas obras primas, como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), O alienista (1882), Quincas Borba (1891), Memorial de Aires (1908).), foram baseadas em temas médicos, mas seria forçar a barra afirmar que foram inspiradas nas doenças.
A moderna psicanálise não crê que a produção artística minimize o sofrimento dos artistas. Os artistas são inventivos por que são.
Você tem consciência de que dois por cento da humanidade sofrem de distúrbio epilético e que a tuberculose, em pleno século XXI, mata mais pessoas do que de qualquer outra doença infecciosa durável?
A tuberculose leva a óbito, por ano, dois milhões de pessoas, 98 por cento das quais em países "em desenvolvimento".
Caso essas doenças fossem inspiradoras de grandes gênios da Literatura, os países subdesenvolvidos seriam os campeões de prêmio Nobel. Creio que associar gênio literário com doença é pura Literatice.
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).

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