terça-feira, 29 de março de 2016

CASA DE CULTURA CHRISTIANO CÂMARA


Christiano Câmara e sua esposa Douvina.
Por Raymundo Netto (*), especial para O POVO.
Rua da Escadinha ou Travessa Baturité, 162. Casa centenária que abrigou entre outros, Gilberto Câmara, jornalista, responsável pela campanha que edificou o mais belo conjunto escultórico de Fortaleza, aquele que representa José de Alencar, na homônima praça, e um dos maiores incentivadores da fundação da Associação Cearense de Imprensa, a ACI. É também a casa que hospedou o poeta paulista Guilherme de Almeida, em 1925, quando em suas peregrinações Brasil afora em defesa da corrente modernista. Ao final, abrigo de um dos maiores pesquisadores e defensores do patrimônio artístico, arquitetônico e cultural brasileiro e cearense: Christiano Câmara.
Há cerca de 9 anos o conheci. Bati palmas ao portão, sendo recebido por Douvina, a sua sempre guardiã e relações públicas, quando me disse, no corredor que dá para cozinha, onde colava tirinhas de papel em fitas K-7: “Se for jornalista, não recebo!” Estava zangado pelos inúmeros que o procuravam para explorá-lo, tomá-lo horas no cumprimento de pautas, mas que não se atrincheiravam com ele na defesa daquilo que lhe era mais sagrado: a história que exibia em suas paredes. “Nunca vi isso. Impressionante... eles não denunciam, não cobram nada às autoridades!” Deu-me como souvenir um texto impresso “Fortaleza sem Rosto”, escrito por ele em 2000: “No Brasil, 3% da população não tem do que reclamar, enquanto 97% não tem a quem”. Sentia-se sozinho em última trincheira, que a cada dia via mais espremida naquela rua, tomada por shoppings de camelôs, oficinas mecânicas, comércio de botijões de gás, estacionamento de caminhões, “um inferno!” Os políticos e autoridades iam lá, pediam-lhe a benção, beijavam-lhe as mãos e depois as lavavam e deixavam Christiano a ver navios, claro, se pudesse vê-los novamente, pois se vendia a beira-mar para arranha-céus de luxo, geralmente dos mesmos donos, os donos do Ceará, aqueles cuja fortuna tinha origem no contrabando, na especulação, em negociatas políticas do passado a preço da ignara alma popular. Afirmava o Christiano: “Raymundo Netto, não adianta. Nunca que essa elite burra e analfabeta vai atrás de passado e de manter tudo isso. Sabe por quê? Por que essa elite veio da merda e eles querem esquecer dessa merda toda!” – nessa hora, d. Douvina tentava acalmá-lo: “Meu velho, você não é de falar palavrão! Não precisa...”.
Há 5 anos, doído e quase choroso, confessou-me que dormia quando ouviu a voz da mulher discutindo com um caminhoneiro na calçada. Ela pedia educadamente que ele abaixasse o volume do som, “pois seu velho estava dormindo”. O caminhoneiro riu e aumentou ainda mais. Christiano foi à calçada, pegou-a pelo braço e a chamou para casa. O motorista falou: “É. Leva essa doida, mesmo!”. Christiano respondeu: “Vou levar, sim, mas só porque, infelizmente, nessa casa não existe mais um homem!”. Foi uma das declarações mais dolorosas que ouvi na vida. Não nos enganemos: esse foi o tratamento que mereceu o nosso Christiano nos últimos anos de sua vida. Aquele que recebia a todos com paixão, brilho nos olhos, falando alto e com entusiasmo sobre um mundo cada vez mais deixado para trás, também seria lembrado apenas pela máquina de afetos que alguns denominam, quando o tem, de coração.
Pois é, a morte não podemos impedir, mas o legado de Christiano podemos, sim, manter. Agora, alguns urubus caíram em cima, tentarão com promessas doces tomar o que puder para si, comprando ou não, algumas raridades. Outros, membros de associações pseudoculturais de vagas vendidas a preço de pagamento de dívidas, ou órgãos oficiais em que os responsáveis se escondem por trás das portas tentarão ganhar vantagem. A hora é de cautela e objetividade. Vejam a luta que seu deu para a permanência da Casa de Juvenal Galeno. É possível, sim.
E, Christiano, que Deus o receba, ao lado de seu Gilberto e dom Helder, com aquilo que ele criou e que você carregou com tanto amor em seus braços: a boa música.
(*) Raymundo Netto é escritor e promotor cultural.
Fonte: Postado no Blog Almanacultura. Publicado In: O Povo, Vida & Arte, de 26/03/2016. p.3.

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