domingo, 12 de março de 2017

A SENHORITA E

Paulo Gurgel Carlos da Silva (*)
Meus amigos poetas escrevem versos apaixonados para suas mulheres e isto tem provocado queixumes em E, minha mulher, a qual espera de mim algo parecido. Entretanto, eu só escrevo humor. Aí, vejo-me numa situação semelhante ao lance por que passou o monge saltimbanco de uma historinha. Ele, por não saber compor música, poema ou iluminura para Nossa Senhora (como os outros da abadia), pôs-se a fazer piruetas em frente ao altar. "Heresia", gritaram todos. Mas Nossa Senhora considerou que o monge saltimbanco, com a sua exibição, simplesmente lhe fizera a melhor das oferendas.
Eis a minha oferenda para E, minha mulher. À consideração de seus olhos compassivos:
Quando conheci a então senhorita E foi como ganhar na loto. Ela fazendo quina e eu, terno (naquele tempo não havia a sena, por isso não lhe outorgo um prêmio maior). E nosso primeiro e inesquecível flerte se deu numa casa noturna que estava em voga. Lá, eu chegara cedo, pegara uma mesa estratégica e me encontrava já de copo à mão. A saborear o rum da imaginação, o gelo da indiferença, a coca-cola da alienação e o limão da realidade: os tais quatro elementos da cuba-libre. E a me entreter, que ninguém é de esponja, com o ato de fazer rolar um punhado de pitangas.
Nesse meu rum(inar), a senhorita E chegou de vestido branco. Toda vaporosa, em sua ânsia de subir aos páramos ela parecia ser contida pelo braço forte do amigo M. E eu, de imediato, achei-a um ser lunar como Diana, a Caçadora, mas não querendo aqui dizer que ela estivesse a fim de qualquer caça. Nisso, o amigo M se viu em dificuldades momentâneas. Como arranjar, naquela casa já lotada, uma mesa para ele e as senhoritas E e F. Então recorreu a mim. Eu tinha uma mesa, três cadeiras ainda vagabundas e a viril condição de empatar aquele jogo.
Mais: eu tinha um punhado de pitangas. O legado de outro amigo, meio sobre o bêbado, que estivera em minha mesa, dissera longas e más, porém que se retirara. Pois bem, foi só M arrastar F para o salão de danças que eu entrei em campo. De sola. Oferecendo pitangas à senhorita E que, açodada, as aceitou. Até então eu nunca havia comido pitangas... nem a senhorita E. De maneira que o flerte aconteceu sob a égide de um novo e diferente sabor. E entabulamos conversa. Na qual ficou provado que o conhecimento profundo é a última coisa necessária para uma conversa animada (obrigado, Beaumarchais). Depois disso, dançamos conforme os tangos e os boleros que a casa oferecia em seu cardápio musical. A ver se possuíamos ferormônios compatíveis.
Sim, OK, positivo, possuíamos. E a noite, negro corcel, com a ajuda do horário de verão, correu aos pinotes. Assim é que amanhecia, quando ela se despediu de mim com um beijo inesquecível, a dez polegadas do meu rosto por escanhoar. Como a senhorita E tinha namorado sob aviso prévio o máximo concessível era aquilo. Mas, ora, feita a primeira concessão todas as demais estavam feitas. Desde que eu controlasse o fauno viciado em mandrágora que me habitava. Enquanto isso, fosse ficando com o número de seu telefone - de fácil memorização. À prova de amnésia alcoólica, portanto.
Passamos a nos encontrar três, duas, uma vez por semana, a atração aumentando... Como se os nossos corpos fossem progressivamente imantados. Um dia, eu lhe falei de amizade colorida, e ela ripostou com casamento em preto e branco. Pedi tempo. Ainda não me sentia bovino bastante para entrar no rol dos homens sérios, se é que isso existe. Numa noite de isolamento, porém, após ouvir Chico Buarque cantar "O Casamento dos Pequenos Burgueses", entrei em parafuso. Tanta coisa tão linda, tão comovente, tão... sobre as vidas dos que tocam a sonata conjugal a quatro mãos!... E liguei para a senhorita E. Fui mais curto que um coice de porco, perguntando-lhe se uma antiga oferta continuava de pé. Continua, quero dizer, continuo - disse-me ela - mas acabo de cair... ao saber que você mudou de idéia. Pelo telefone ouvi o baque.
Em 84 o liberalismo dos costumes já se achava em franco refluxo. A ponto de o historiador A. Toynbee assegurar que o coroamento da revolução sexual seria a volta do ascetismo. Mas, diabos, em 84 o que ainda estavam fazendo aqueles homens, senhores respeitáveis, nas esquinas em que eu procurava praticar a arte da paquera? Seus carros, lembro bem, exibiam nos pára-brisas o indefectível logotipo do Encontro de Casais... Ah, eu enfrentava uma concorrência fortíssima e, mesmo assim, não os entregava às respectivas patroas. Isso e mais a música do Chico foram os empurrões para o meu "enforcamento", acredito.
Entretanto, antes de irmos morar sob o mesmo teto rebaixado de lambris, precisávamos tomar certas providências. O casamento civil. Fui contra que ela mudasse o nome de solteira, mas depois cedi. Porque ela precisava limpar o nome na praça para novos créditos. Pela frente, havia ainda os gastos com o casamento religioso: convites, decoração da igreja, reportagem fotográfica, bufê a quinhentos cruzeiros por pessoa... e o vestido de noiva. Que a senhorita E fez questão de que fosse assinado por um estilista famoso (a pincel atômico, emporcalhando a cauda do vestido).
À hora de jogar a grinalda, amontoaram-se as raparigas casadoiras. A senhorita G, saltando como a Hortência do basquete, foi quem pegou o ambicionado troféu. Mas, que eu saiba, até hoje morre de frio nas noites de julho. Concluída a recepção, era partirmos para a lua-de-mel num carro com latinhas amarradas na traseira (do carro). Aliás, nem seguimos esse super nordestino costume porque o veículo, com o escapamento semi-solto, já fazia barulho suficiente. A senhorita E queria praia e eu, sertão. E passamos a lua-de-mel na serra, com ela de ouvido grudado numa concha, apenas pelo contentamento de ouvir o marulho, registro o fato.
O casamento é uma espécie de terreno instável. Parafraseando Churchill, é a pior forma de relacionamento homem-mulher, salvo as demais que já se praticaram. E não existe uma fórmula exata para que dê certo. Mas se diz que ajuda a mútua renúncia. Por exemplo, nós vamos colocar cortinas novas na sala. Eu renuncio ao vermelho, ela, ao azul; na rodada seguinte, eu repudio o amarelo, ela, o marrom; etc. Até sobrar uma cor única, incontestável, para a euforia do vendedor que já considerava invendável uma cortina daquela cor... E, aos poucos, sem arrufos de parte a parte, alfaia-se a casa.
Hoje, nos une um amor puro, intenso e desinteressado. Mas ainda não recebi o dote.

(*) Médico, especialista em pneumologia. Escritor e um dos fundadores da Sobrames/CE. Administra cinco blogs.

Fonte: preblog-pg.blogspot.com.br. Postado em: 25/01/2008.

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